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O mimetismo do urutau (o Programa Educacional Agronegócio na Escola)

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Bem que o Marcello Brito avisou: “essa entrega de prêmios para a meninada é comovente; eu vim no ano passado e achei emocionante”.

Fomos entrando pela bela alameda do IAC/CANA de Ribeirão Preto no começo da tarde de 13 de novembro. A Valéria Ribeiro ao volante, eu, de mais velho, a seu lado; no banco de trás o Marcello Brito, o Jorge Duarte e a Mônika Bergamaschi, a líder dos acontecimentos que começaram na véspera com o julgamento do “Prêmio José Hamilton Ribeiro de jornalismo” promovido pela ABAG/RP. Dia bonito, já com os bons efeitos da primavera e das primeiras chuvas espalhando o verde e as flores pra todo lado. A passarinhada voando excitada em seus amorosos preparativos para as ninhadas da estação. Enfim, um ambiente bem diverso daquele do mês de maio quando, neste mesmo cenário, se dá uma das mais importantes feiras de agronegócio do mundo: o AGRISHOW, com suas máquinas maravilhosas, sua tecnologia de ponta, seu frenesi de negócios. O espetáculo de hoje vai ser de outra natureza. Os atores principais são estudantes, entre 9 e 16 anos, vindos de inúmeras cidades do interior de São Paulo.

E lá estão os ônibus que descarregaram alunos e professores para o evento da premiação do grande concurso de frase, redação, desenho, feira de conhecimento versando sobre o agro. Prêmio também para a melhor escola e para os professores mais empenhados, sempre dentro do tema agro.

Na entrada do auditório uma simpática recepção com algumas guloseimas e refrescos. Peguei uma meia dúzia de biscoitinhos de polvilho e já fui, como se fosse um vovô, para não dizer bisavô... já fui me enturmando com os meninos: “de onde você veio? Sua escola está concorrendo em que categoria? Vocês são de onde?” Menino ou menina olhava curioso pra mim e eu ia inventando alguma coisa para conversar. Que delícia! No salão lotado, o alarido parecia de intervalo de recreio.

Presidente do Conselho Diretor da ABAG/RP, Mônika Bergamaschi sobe ao palco e começa a comandar o espetáculo. Com que categoria, com que domínio do microfone, do roteiro, com que facilidade de enfrentar os imprevistos! Eu já notara essa sua aptidão na entrega dos prêmios de jornalismo do ano passado, 2017. Agora confirmo: Mônika é uma âncora, uma comunicadora nata. No meu tempo de executivo de televisão eu a teria contratado de olhos fechados. Mas vamos em frente.

Logo na primeira categoria, a de redação, foi possível constatar o excelente nível dos trabalhos. Neste caso a qualidade levou excepcionalmente à premiação de quatro e não apenas três textos, com um empate no terceiro lugar. Assim foi andando a carruagem nas duas categorias seguintes: desenho e frases. Nestas predominou o recurso de rimas como no caso da primeira colocada, Lívia Santos Silva, do município de Colômbia. Olha que síntese: “Para um mundo em harmonia agronegócio e sustentabilidade devem estar em sintonia.”

Mais de uma vez Mônika lembrou que esse encontro festivo era o ponto de chegada de um trabalho de ano inteiro de escolas, professores e alunos. Aos professores e à garotada foram dadas oportunidades de ouvir palestras especializadas, de fazer visitas a fazendas, a indústrias do agro, de trabalhar com as próprias mãos em experimentos que desaguaram na etapa seguinte da premiação: a da Feira de Conhecimento. Para mim o ponto alto de tudo que aconteceu naquela tarde. Não desconsidero o que veio depois, a premiação dos professores e das escolas. Mas essa feira, em sua quinta edição, essa sim, foi onde a criançada empolgou e comoveu. Eu ousaria dizer que essa parte do evento tem mérito até para figurar no encerramento, depois dos professores e das escolas.

Se no caso das frases, dos textos e dos desenhos houve apenas a comunicação dos resultados, agora não. Agora o julgamento dos finalistas era ao vivo, com uma equipe de três alunos apresentando seu trabalho, com o júri ali na frente e com o imenso salão lotado até o fundo para ser encarado. O formato é aquele clássico de um bom programa de auditório onde, depois da apresentação e dos aplausos, os jurados comentam suas impressões com os alunos que estão no palco. Trata-se de julgar conteúdo, comunicação, desempenho das crianças, tudo correndo contra o relógio que estabelece rigorosamente o tempo de 5 minutos para cada apresentação. A aflição era geral, o auditório acompanhando disciplinadamente as gaguejadas, os tropeços e a inibição natural de quem precisava superar-se para não decepcionar, para explicar direitinho, para ganhar. Como a gente torce para que cada menina e menino encontre a palavra que está fugindo, o fio da meada! Os jurados ali de olho. E que jurados. Poderiam estar julgando universitários ou adultos em geral, o que achei do maior respeito para com as crianças. Veja só o nível: Professora Débora Vendramini diretora do Centro Universitário Barão de Mauá, de Ribeirão Preto. Débora foi brilhante, mais tarde, no julgamento dos professores, conversando sabiamente com cada um. José Tonon Junior, gerente de comunicação da Jacto, lá de Pompeia. Carlos Alberto Pasetti de Souza, presidente do Grupasso, de Araras (Laticínios Xandô). E Leandro Amaral, diretor comercial da Syngenta. De vez em quando eu dava uma olhada para eles e vou arriscar um palpite: eles também ficaram emocionados e felizes com o trabalho que estavam fazendo.

Vi e ouvi praticamente de tudo que diz respeito ao milagre das plantas desde o sol, a água, o solo, a fotossíntese até as cadeias produtivas, até a sustentabilidade do planeta, até nós os humanos. Teve até trabalho sobre o teorema de Pitágoras e sua relação com o agro, quase que dizendo que agro e matemática (ou, agro e ciência) têm tudo a ver um com o outro.

Sentado entre o Jorge Duarte (chefe de comunicação da Embrapa) e do Marcello Brito (CEO da Agropalma) de vez em quando eu trocava um cochicho com eles. Foi por aí que comentei com o Marcello um trabalho que teve uma apresentação em dois tempos. Eram três meninas. O tema Sistemas Agroflorestais. As duas primeiras estiveram muito inibidas, não foram bem em sua apresentação, digamos, “discursiva”.
Da metade pra frente entrou a terceira garota, Helen, apresentando o tema numa adaptação de estrutura digital de um jogo eletrônico até que simples. Ao contrário das primeiras, esta aluna estava desinibida, fluente, à vontade. Cochichei com o Marcello: “esse trabalho teve duas fases, uma analógica e outra digital; a analógica apanhou e a digital salvou a pátria.”

Passaram-se os dias, algumas semanas, e essa coisa ficou rolando na minha cabeça. Foi daí que acabei chegando ao “Mimetismo do Urutau.” Coisa que nem sei explicar direito porque ainda está embrulhada na minha cabeça, mas vou tentar.

Todos, absolutamente todos os alunos que subiram ao palco nasceram no século XXI. Estão sucedendo a tão cantada geração dos “millennials”, a da virada do milênio. Chegaram ao mundo, para resumir, onde já existia o “smart phone”, esse computador portátil capaz de mil e uma proezas. O próprio mundo, as ciências, as tecnologias, os negócios, os serviços, os idiomas, a educação... é tudo novo. Mais ainda: trata-se de um novo que se auto renova alucinadamente a cada ano, a cada mês, a cada instante. Internet das coisas, conectividade, educação à distância, inteligência artificial e o escambau a quatro. Trata-se de um salto gigantesco e fascinante como jamais visto na história da humanidade. Seja na escola, seja dentro de casa, seja onde for, esse novo mundo passou a ser fundamental no processo educacional das crianças. Não se concebe hoje uma escola sem seu aparato de computadores. É o universo assim chamado digital, ensejado em sua raiz por apenas dois impulsos, um negativo e outro positivo. É sim ou não. É lógico. A definição corrente de “Algoritmo” (uma das palavras mais usadas do atual digitalês) diz tratar-se de “um conjunto de operações sequenciais, lógicas e não ambíguas, que aplicadas a um conjunto de dados, permitem encontrar a solução para um problema num número finito de passos”.

Lógicas e não ambíguas.

Pois bem. Acontece que a ambiguidade está espalhada por todos os poros da natureza. Nós mesmos, os animais racionais, somos ambíguos até a medula. Somos analógicos. Seremos analógicos em 2030, em 2100, em 2500, em 3000 se o planeta nos aturar até lá. O mimetismo do urutau (poderia ser o da mariposa, do polvo ou do camaleão) parece uma ilustração perfeita de ambiguidade da natureza. Na ponta do toco seco ele é uma dissimulação, é um fingimento para se defender. Ele está dizendo “eu sou a ponta do toco”, sem ser. Quem anda no mato com frequência já teve a sensação de susto, de frio na espinha, quando percebe um conjunto de lagartas da cor do tronco da árvore, a cascavel no meio dos gravetos e folhas secas, o urutau. Não tem lógica.
Preciso registrar que há uma tese formulada por biólogos modernos (comentada por Yuval Harari em seu livro “Homo Deus”) segundo a qual os seres vivos na verdade são regidos por algoritmos. Isso porque a cada reação, por exemplo do ser humano, corresponde um intricado desencadeamento de substâncias químicas perfeitamente traduzíveis em algoritmos. Por esse caminho se poderia chegar ao paradoxo de que mesmo o mundo analógico seria domesticável pelo digital? Humildemente, me limito a ver diferenças entre os dois. Por mera observação por certo oriunda de um ponto de vista analógico.
Outro dia li uma notícia de que o Príncipe William e sua mulher Kate Middleton estavam permitindo só brinquedos analógicos para seus filhos! Não acredito que eles sejam contrários às novas tecnologias. Imaginei que eles queiram preservar, ou formar a sensibilidade para a analogia dos filhos antes de colocar os jogos digitais em suas mãos. Porque - continuo imaginando - eles vão precisar de sensibilidade analógica para se distinguir, para viver a vida como ela de fato parece ser. Cheia de semelhanças, cheia de imprevistos, de surpresas. Nenhum algoritmo vai resolver a tristeza no coração da menina que levou um pé do namorado, ou o luto da outra que perdeu a avó querida. Ou explicar a alegria daquele que passou no vestibular.

Acredito que nos dias de hoje aparelhar uma escola com o máximo possível de recursos digitais é o óbvio dos óbvios. É preciso que todos tenham acesso às novas tecnologias. Isso é indiscutível. Mas acredito também que, a ênfase ou a exclusividade de tais recursos não pode de maneira nenhuma abandonar as vias analógicas de aprendizado. Porque, pela sua ambiguidade, elas são muito mais ricas de que a mania de padronização proposta atualmente pelas vias digitais. É uma questão de equilíbrio entre o digital e o analógico na educação das crianças. Eu pergunto: o mundo real (e não virtual) tem mais certezas ou mais dúvidas? O universo binário só admite certezas e não ambiguidades. Capitu traiu ou não traiu Bentinho? É uma pergunta impossível de ser respondida por um programa. Nós também não respondemos, mas a pergunta nos deixa na cuca essa coisa necessária para se viver bem chamada dúvida.

Ora, a oportunidade desse projeto do agro na escola - em geral abrigado dentro dos espaços do currículo dedicado às ciências da natureza - fica luminosa nesse contexto. É na natureza que a vida, em seus aspectos palpáveis e visíveis, manifesta-se plenamente. Aquelas coisas básicas da Feira do Conhecimento. A semente do amendoim, o sol, a água, as árvores, a terra.

E vamos ser francos, ainda que contundentes. Mesmo que cercadas por canaviais, cafezais, pastos e currais, as cidades do interior de São Paulo têm todas as características de núcleos urbanos. O que chega do campo até elas, até as mesas, as camas, até o banheiro já chega morto. É. É isso mesmo. O campo nos garante a cota de morte de cada dia de que precisamos para viver. Já que precisamos falar de sustentabilidade temos de encarar tal fato. Por isso é que temos de conhecer e respeitar a origem de tanta vida cultivada e criada no campo para nos sustentar. É dessa beleza ambígua, sem limites, sem fronteiras que nos sustentamos. Vida de vida!

Apreciei muito o respeito da plateia para com todos, vencedores e perdedores. Um respeito comovente para com os professores que também foram ao palco para concorrer com seus trabalhos.

A propósito, sobre perdedores quero falar de dois, com toda reverência à decisão do júri que não os levou ao pódio. O primeiro é o menino Matheus Santos de Lima da Escola Professor Raul Machado de Ribeirão Preto. Ele apresentou em nome da equipe o projeto “A história do Agronegócio”. Acho que ele ainda não completou 10 anos de idade. Sua desenvoltura, sua fluência, seu gestual foram notáveis. Sim, falou muito rápido porque tinha mais informação para passar do que os 10 minutos disponíveis. Mas sua simpatia conquistou a plateia que o ovacionou como não ovacionou ninguém mais naquela tarde. E ficou absolutamente à vontade, engraçado, nos agradecimentos dos aplausos. Estava com tudo. Mas perdeu. Sua equipe não pegou nem o terceiro lugar. Quando isso aconteceu olhei para onde ele estava. Quanto sofrimento, quanta frustração! Acho, Mateus, que você teve uma das mais fundamentais lições de vida naquele momento: a gente perde. Os grandes campeões perdem lutas, perdem pênaltis, perdem concursos. Mas vão em frente porque não temem disputar e buscam a vitória ainda que por vezes ela lhes escape. Você é um comunicador nato e isso vai ser muito precioso em sua vida. Siga em frente tranquilo porque agora você está vacinado contra o excesso de confiança e de vaidade. Todos os alunos participantes da Feira ganharam caixinhas de som wireless e Mateus, ao ser entrevistado pela TV Globo local, se disse orgulhoso do que fez.

O segundo perdedor é uma perdedora. A professora Rosana Zanetti do Colégio Municipal José Coutinho Pereira da cidade de Sales Oliveira. Antes de contar o caso dela é preciso dizer, a favor do júri, que a avaliação do trabalho dos professores leva em conta muitos quesitos anteriores, coisas que se passam no decorrer do ano inteiro, pontos que vão se acumulando antes do confronto final.

Muito bem. Rosana cuida de uma classe de crianças especiais que precisam de abordagem pedagógica adequada, o que não é fácil. Como falar de agronegócio para elas? Ela partiu de barras e bombons de chocolate, uma unanimidade entre os alunos. Daí ela fez a cadeia toda, de frente pra trás, chegando ao fruto e à semente do cacau. Tinha 2 pés de cacau em Sales Oliveira. Rosana levou os meninos até lá. Conseguiu os frutos. Tirou as sementes. Uma parte ela processou: fermentou, secou, triturou e fez chocolate junto com as crianças. Da outra parte ela fez mudas. As mudas pegaram e a classe saiu por Sales Oliveira a fora, nas praças e jardins, plantando cacaueiros. Analogicamente. Onde tinha 2 cacaueiros agora tem dezenas. Rosana também não pegou pódio, pegou o prêmio de participação conferido a todos os concorrentes. Mas ela é uma mulher madura, controlada. Não demonstrou frustração, talvez a boca ligeiramente travada, talvez pensando em suas crianças diferentes. Estava ela ali, bem na minha frente, e ... não resisti. Levantei-me, me aproximei bem pertinho do ouvido dela (acho que ela até se assustou), extrapolei minha condição de mero convidado, e lhe disse: “você não precisa de prêmio”. Só isso. Posso agora acrescentar: o grande prêmio está plantado nos jardins de Sales Oliveira.
Conclusão. Não tenho como não enxergar nesse programa uma vocação universal. Fiquei sabendo que nos 18 anos de “Agronegócio na Escola”, já passaram por ele cerca de 3.500 professores e 238.030 alunos. Ele é bom para cidades como Colômbia, Cravinhos, Guariba, Sales Oliveira, Jaborandi, Viradouro e Dobrada, todas cercadas de agro, de campo? Ou o programa seria bom também para um currículo de Rio, São Paulo, Brasília, Londres ou Nova York? Urutau neles.


Humberto Pereira
São Paulo, 08 de dezembro de 2018

ABAG/RP